A BRINCAR E A APRENDER
Maria da Graça Messias Henriques - Psicologa e Mestre em Psicologia pela Faculdade de Psicologia e de Ciências de Educação da Universidade de Coimbra - Portugal
RESUMO
A autora destaca que o brincar e a aprendizagem estão intimamente ligados. Considera que a esfera lúdica, num plano emocional, é revitalizadora tanto quanto mediadora da aprendizagem que, por sua vez, possibilita a criação. Também reflete que a resistência ou a incapacidade de participar de algum jogo revela um Eu inundado por temores que pode inibir o pensamento e o desenvolvimento psico-emocional e relacional.
Certamente, não é especulativo dizer que quando bebê, o brincar revela-se de forma sensitivo-motora; contudo, desde esse primórdio já existem características próprias de movimento, de sensibilidade e de reações reflexas que anunciam o desenvolvimento psicológico, paralelo ao fisiológico, ou melhor, às sensações cinestésicas. Significa que a partir dessas sensações, explora e apreende o mundo realizando atividades que, centralizadas em seu próprio corpo, prepara o desenvolvimento de funções como o andar e a linguagem. Porém, nesse jogo autocósmico, como chama Erickson, é imperioso dar-mo-nos conta das dimensões emocionais e afetivas que o compõe, uma vez que neste espaço potencial, no sentido de que fala Winnicott, objetiva a vinculação. Admitir-se-á, portanto, que a partir dessa vinculação o bebê está pronto a encontrar com o mundo dos brinquedos e, mais crescido, compartilhar sua imaginação e fantasia.
É curioso (quanto envolvente) observarmos como o brincar das crianças têm a ver com a espontaneidade de seus olhares[1]. Todas as vezes que brincam o fazem não tão-somente por serem capazes de participar da natureza, como em Rousseau quando afirmou que a natureza deseja que as crianças sejam crianças antes de ser homens, mas por serem capazes de olhar com seriedade os afetos, quando estão a brincar. Talvez, por isso, brincar seja um espaço do qual não pode ser abandonado, tanto porque se descobre a si (e ao outro) através dos brinquedos e brincadeiras (portanto, aprende-se!), quanto, já dizia Claparède, por ser a única atmosfera em que o ser psicológico pode respirar e agir.
A importância do brincar e dos brinquedos, no sentido clássico do termo, não constitui apenas uma necessidade biológica destinada a descarregar energia. Quando as crianças brincam é à verdade, porque pensam sobre suas experiências emocionais e torna (re)conhecível suas potencialidades. Como não há gestos inúteis, qualquer que seja a atividade lúdica conduz ao encontro da criatividade. Winnicott (1975) nos fala enfaticamente que “é no brincar que o indivíduo criança ou adulto pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self)”.
Na expressão de Groos (1940) é suposto com sensatez que as descobertas e invenções mais primitivas foram criadas, provavelmente, a partir do envolvimento lúdico com as coisas: o domínio do fogo, por exemplo.
Assim, num plano mental, brincar não é puro divertimento. Supõe a evocação de uma relação de domínio e triunfo entre a realidade psíquica e o mundo real no qual se vive, conferindo harmonia ao pensamento e às emoções. Talvez por isso, quando se brinca, organiza (ainda que intuitivamente e numa qualidade mágica) o mundo interior e abre espaço para a aprendizagem, num processo análogo ao das crianças quando encaixam quebra-cabeças, como percebendo que haverá sentido na junção das peças, e também entendessem que aprender converte o significante em significado. Haverá, então, a partir do lúdico, um lado estruturador na aprendizagem: não faz sentido aprender quando se não o faz por um sentido dentro de nós.
Muitas das indisponibilidades para a aprendizagem talvez surjam quando o brincar das crianças se encontram com o silêncio do desejo de aprender. Esse silêncio, não deixa lugar para a imaginação (e, tantas vezes, por isso, inibe o pensamento, que é uma maneira de não perceber os afetos) e a curiosidade que, separada do desejo, não pode cultivar a idéia.
Van-Helmont[2] diria que o desejo realiza-se na idéia e que, por sua vez, realiza o encantamento. Nele, suponho, sobressai os gestos mágicos que, manifestados no brincar, alimenta os sonhos, dramatiza os comportamentos e dá asas à criatividade. Esses movimentos serão como disponibilizadores de “espaço-conteúdos” para a aprendizagem. Afinal, como já tenho dito, a verdade com que as crianças brincam (conscientes do que é o brincar) imprimem um mister de significados essenciais à relação, conjugando suas emoções e propiciando o seu crescimento.
Por outro lado, perante a criança que não consegue aprender (aquilo que esperamos que ela aprenda) urge considerarmos uma criança que não consegue dar sentido ao brincar; talvez, porque perceba-se incapaz de dar à sua realidade interna o seu significado. Cristalizadas, bloqueiam as experiências no espaço vivido do brincar e do aprender.
Mário[3], 9 anos, realizando pela segunda vez a 2a série, encontrava-se com dificuldades em Matemática. O motivo pelo qual nos foi levado pelos pais (por recomendação da professora) dizia respeito também a uma ansiedade difusa, freqüentes queixas somáticas (cefaléias) e uma rejeição ativa em participar das atividades escolares, sobretudo das brincadeiras recreativas. A sua relação com os colegas tinha-se transformado num constante desentendimento, no qual Mário era evitado por estar sempre a agredir.
Nas primeiras sessões, Mário prostrou-se num estado de não ser capaz de brincar, numa mesma proporção do medo que sentia em assumir os riscos que o início (até o (in)finito) de uma relação (afetos e pensamentos) implica. Embora se comunicando verbalmente com favorável disposição, não tocava nos brinquedos. Dizia não apreciá-los, nenhum jogo, revelando uma atitude que parecia resguardar-se de tudo e de todos, como aos seus segredos mais íntimos. Recorria massivamente ao relato de suas brigas com os colegas, declarando ser o motivo principal da sua recusa em ir à escola como ao de não gostar de estudar porque a professora era-lhe insuportável.
Nas sessões subsequentes, após relevantes esforços no sentido de lhe mostrar o privilégio do poder (do) brincar, apresentou-se mais receptivo e espontâneo aos jogos (e de certo modo, aos sonhos[4], tendo-se prontificado, nessa altura, a contar-nos os sonhos que tivesse no dia anterior ou à semana do atendimento), permitindo, a partir de então, não tão-somente trabalharmos as suas dificuldades escolares, mas ajudá-lo a re-organizar suas experiências e conflitos internos.
Detive-me, resumidamente neste caso, apenas para elevar a importância e a coerência que o brincar e o jogo representa na realidade da criança. Perante a estas emoções, permite-se mudanças psíquicas. Quando o brincar torna-se dramaticamente intolerável, sente-se só para aprender e submerso em angústias. Semelhante ao brincar (que funciona como uma catarse, segundo o qual libera-se emoções contidas e encontra-se alívio), o aprender transpõe o temor de ficar enclausurado (numa ignorância sem afetos e sem espaço para confiar os pensamentos). Relembro Chateau (1961), ao refletir que “não podemos imaginar a infância sem os seus risos e os seus jogos. Imaginai que, de repente, as crianças deixavam de jogar, que os recreios das nossas escolas se tornavam silenciosos, que já não éramos distraídos pelos gritos ou até pelos choros que vêm do jardim ou do pátio do recreio. Já não teríamos junto de nós esse mundo infantil que faz as nossas alegrias e os nossos tormentos, mas um povo triste de pigmeus ineptos e silenciosos, sem inteligência e sem alma”. Imaginem...
BIBLIOGRAFIA
* CHATEAU, J. A criança e o jogo. Coimbra: Biblioteca Filosófica, 1961.
* ERIKSON, E. H. Infância e sociedade. Rio de Janeiro: Zattar Editores, 1971.
* GROOS, C. O brincar como factor psicológico. Lisboa: Editora Argo, 3a edição, 1940.
* ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da Educação. São Paulo: Difel Difusão Editorial S.A, 3a edição, 1979.
* WINNICOTT, Donald. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1975
[1] - Poder-nos-emos perguntar se a criança portadora de deficiência visual grave (como a cegueira) torna-se limitada na sua espontaneidade. Absolutamente! Pois têm uma maneira particular de se expressarem, olhando o mundo com outras capacidades sensoriais e perceptivas que dispõe um universo de emoções e afetos providenciando o auto-descobrimento.
[2] - Van-Helmont foi um filósofo alquimista entre o século XVI e XVII, que atribuía o resultado de seus amuletos e encantamentos ao magnetismo emitido pela vontade. Na sua concepção, o homem possui uma energia que obedece à vontade que, ligada ao potencial imaginativo, é capaz de atuar e influir sobre as pessoas e os objetos.
[4] - O brincar pode ser considerado análogo ao sonhar, permitindo existir um espaço onde ambos revelam o mundo interno e se torna realidade sem, no entanto, amedrontar-se com ela sempre que, no espaço interior de alguém, sentir despertar a confiança.
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