Mestres

terça-feira, 18 de março de 2014

RAZÃO X DESRAZÃO



"A loucura estava inscrita no mundo, fazendo parte de suas paisagens,  sejam estas reais, imaginárias ou simbólicas.  A experiência da loucura se inscrevia nos rituais comunitários, estabelecendo-se, pois, um diálogo vigoroso com o mundo.  No imaginário estético de então, seja literário, seja este oriundo das artes plásticas, a loucura era um espaço oracular de enunciação da verdade. Tudo isso constituiu o que Foucault chamou de experiência trágica da loucura. Foi esta então que foi sendo progressivamente desqualificada com o surgimento da experiência crítica da loucura, que constituiu paulatinamente uma outra tradição na qual a razão como Outro se instituiu como o operador fundamental contra a desrazão. Com isso, inscrita no território escatológico da desrazão, a loucura passou a perder não só o seu poderde dizer a verdade, mas também de dizer enquanto tal, já que esse poder passou a ser regulado pela razão.

Nesse contexto, em que a experiência trágica da loucura passou a ser inserida apenas no território obscuro da desrazão, a loucura continuou a ser plasmada em prosa, verso e cores nas tradições literária e estética, amputada e desvalorizada que foi do seu poder de dizer no registro da razão. Em contrapartida, a experiência critica, definindo agora a hegemonia assumida pelo território da razão, colocou progressivamente a loucura como sendo sempre suspeita e inscrita nos limites do inaudível. A loucura foi então definitivamente dessacralizada, marca eloquente que ela ainda tinha no Renascimento e que era oriunda da antiguidade. Essa perda do traço do sagrado implicou o esvaziamento do seu poder oracular, isto é, do seu potencial de dizer qualquer coisa, de enunciar o verdadeiro.  Enfim, a constituição da psiquiatria no século XIX, como um saber específico sobre a loucura foi o coroamento da dita tradição crítica e de domínio inquestionável da razão sobre a desrazão.” 

Joel Birman, Entre cuidado e saber de si - sobre Foucault e a Psicanálise



Um comentário:

  1. Sem a loucura como poderíamos imaginar os deuses. Sem a loucura como poderíamos nos apaixonar?
    A desrazão nada mais é que uma maneira de se atingir um objetivo sensorial sem limites...

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